No centro de formoso jardim, havia um grande lago (1),
alimentado por diminuto canal de pedra, que escoava suas águas, do outro lado,
através de grade muito estreita. Nesse reduto acolhedor, vivia toda uma
comunidade de peixes (2) que elegeram um rei, e viviam despreocupados, entre a
gula e a preguiça. Junto deles, porém, havia um peixinho vermelho (4) menosprezado
por todos. Não conseguia pescar e nem era ajudado pelos outros. O peixinho
vermelho estava sempre com fome e com calor. Por não dispor de tempo para muito
lazer, começou a estudar com bastante interesse. Fez o inventário de todos os
ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou todos os buracos nele
existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria maior massa de lama por
ocasião de aguaceiros. Depois de muito tempo, à custa de longas investigações,
encontrou a grade do escoadouro (6).
Decidiu, ao ter a imprevista oportunidade de aventura,
pesquisar a vida e conhecer outros rumos. Apesar de magro pela abstenção
completa de qualquer conforto, perdeu várias escamas, com grande sofrimento, a
fim de atravessar a passagem estreitíssima. Mas avançou, otimista, encantado
com as novas paisagens, ricas de flores e sol. Alcançou grande rio e fez
inúmeros conhecimentos.
Encontrou peixes de muitas famílias diferentes que com ele
simpatizaram, instruindo-o quanto às dificuldades e oportunidades dos caminhos
a percorrer, viu homens e animais, embarcações e pontes, palácios e veículos,
cabanas e arvoredos. Habituado com pouco, vivia com extrema simplicidade,
jamais perdendo a leveza e agilidade naturais. Conseguiu, desse modo, atingir o
oceano (5), cheio de novidade e sedento de estudo.
De início, porém, fascinado pela paixão de observar,
aproximou-se de uma baleia (7), para quem toda a água do lago em que vivera não
seria mais que diminuta ração; impressionado com o espetáculo, chegou perto
dela mais do que devia e foi tragado como parte da primeira refeição diária. Em
apuros, o peixinho aflito orou ao deus dos peixes rogando proteção e, não
obstante as trevas em que pedia salvamento, parece que sua prece foi ouvida,
porque o valente cetáceo começou a soluçar e vomitou, restituindo-o às
correntes marinhas. O pequeno viajante, agradecido e feliz, procurou companhias
simpáticas e aprendeu a evitar os perigos e as tentações.
Plenamente transformado em suas concepções do mundo, passou
a reparar nas infinitas riquezas da vida. Encontrou plantas luminosas, animais
estranhos, estrelas móveis e flores diferentes no seio das águas. Sobretudo,
descobriu a existência de muitos peixinhos, estudiosos e delgados tanto quanto
ele, junto dos quais se sentia maravilhosamente feliz.
Vivia, agora, sorridente e calmo, no palácio de coral (9)
que elegera, com centenas de amigos, quando, ao contar de onde viera, soube que
somente no mar as criaturas aquáticas dispunham de garantias, uma vez que,
quando o estio viesse, as águas de outra altitude continuariam a correr para o
oceano.
O peixinho pensou, pensou e, sentindo imensa compaixão por
aqueles com quem convivera na infância, decidiu levar as informações que
poderiam salvá-los. Não hesitou. Fortalecido pela generosidade de irmãos benfeitores
que com ele viviam no palácio de coral, empreendeu viagem de volta. Tornou ao
rio, do rio dirigiu-se aos regatos e dos regatos se encaminhou para os
canaizinhos que o conduziram ao primitivo lar.
Esbelto e satisfeito como sempre, pela vida de estudo e
serviço a que se devotava, varou a grade e procurou, ansiosamente, os velhos
companheiros. Estimulado pela proeza de amor que efetuava, pensou que seu
regresso causasse surpresa e entusiasmo. Achou que a coletividade inteira lhe
celebraria o feito, mas depressa verificou que ninguém se mexia.
Todos os peixes continuavam pesados e ociosos, nos mesmos
ninhos lodacentos, protegidos por flores de lótus, de onde saíam apenas para
disputar larvas, moscas ou minhocas desprezíveis.
Gritou que voltara, mas não houve quem lhe prestasse
atenção, porque ninguém havia percebido sua ausência. Ridicularizado, procurou,
então, o rei de guelras enormes (3) e comunicou-lhe a reveladora aventura.
O soberano, algo entorpecido pela mania de grandeza, reuniu
o povo e permitiu que o mensageiro se explicasse.
O benfeitor desprezado esclareceu que havia outro mundo
líquido, glorioso e sem fim. Aquele poço era uma insignificância que podia
desaparecer de um momento para outro. Além do escoadouro próximo desdobravam-se
outra vida e outra experiência. Lá fora, corriam regatos ornados de flores,
rios caudalosos repletos de seres diferentes e, por fim, o mar, onde a vida
aparece cada vez mais rica e mais surpreendente. Descreveu tainhas, salmões e
trutas. Deu notícias do peixe-lua, do peixe-coelho e do galo-do-mar. Contou que
vira o céu repleto de astros e que descobrira árvores gigantescas, barcos
imensos, cidades praieiras, monstros temíveis, jardins submersos, estrelas do
oceano e ofereceu-se para conduzi-los ao palácio de coral, onde viveriam todos
prósperos e tranquilos. Finalmente, informou que semelhante felicidade tinha
igualmente seu preço. Deveriam todos emagrecer e aprender a trabalhar e estudar
tanto quanto era necessário à aventurosa jornada.
Assim que terminou, ouviu gargalhadas estridentes. Ninguém
acreditou nele. Alguns oradores tomaram a palavra e afirmaram que o peixinho
vermelho delirava, que outra vida além do poço era impossível, que aquela
história de riachos, rios e oceanos era mera fantasia de cérebro demente.
O soberano da comunidade, para melhor ironizar o peixinho,
dirigiu-se em companhia dele até a grade de escoamento e, tentando de longe a
travessia, exclamou, borbulhante:
– Não vês que não cabe aqui nem uma só das minhas
barbatanas? Grande tolo! Vai-te daqui! Não nos perturbe o bem-estar. Nosso lago
é o centro do universo. Ninguém possui vida igual à nossa!
a golpes de sarcasmo, o peixinho realizou a viagem de
retorno e instalou-se, em definitivo, no palácio de coral, aguardando o tempo.
Depois de alguns anos, apareceu pavorosa e devastadora seca
(8). As águas desceram de nível. E o poço onde viviam os peixes pachorrentos e
vaidosos esvaziou-se, compelindo a comunidade inteira a aparecer, atolada na
lama...